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domingo, 24 de abril de 2016

Humano, o Imortal


"Entendam bem, ser humano é conhecer.

Ser humano é compreender e o principal objeto desse estudo é o próprio ser humano. Claro, conhecer a física, a química, a matemática é muito bonito, maravilhoso. Mas tudo isso não serve para nada se o sujeito não compreender o ser humano. Existe uma obra notável sobre isso, a obra chamada A defesa de um matemático, de Thomas Hardy [G. H. Hardy]; foi um grande matemático do século XX. Nesse livro, ele vai escrever o seguinte:

‘Matemática é um algo maravilhoso, é genial, é incrível. Mas eu passei a minha vida toda só estudando matemática e a minha vida foi uma merda. Não valeu à pena, não entendi sobre mim mesmo. Tudo o que eu quis deu errado. Todas as pessoas de quem eu gostava se afastaram de mim. Não entendi nada, ninguém gosta de mim. A vida do matemático é uma droga. Porque essa foi a única coisa que eu quis compreender da realidade’ – ele mesmo fala – ‘eu posso até ter sido uma pessoa brilhante’ – porque foi de fato um matemático brilhante – ‘mas eu deveria ter usado essa inteligência para um objeto mais interessante, mais útil, que é o ser humano’.

A obra é interessantíssima, porque tem vários detalhes autobiográficos e várias coisas sobre matemática – por exemplo, nessa obra tem um capítulo, um ensaio sobre a apreciação estética das
fórmulas matemáticas. Provavelmente, a pessoa que tenha gostado um pouco de matemática – aquilo lá é um negócio brilhante, o sujeito era um gênio mesmo. Mas está lá um registro de que isso aqui não basta. Vocês podem se tornar um sujeito perfeito - um excelente profissional, um grande médico, um grande matemático, um grande político, um grande advogado, um grande ator; eu digo que isto não valerá nada. Quando chegar ao final, você irá dizer: ‘não valeu a pena’. Por quê? Porque o ser humano, enquanto ser humano, só serve para uma coisa: compreender. E ele não deve gastar essa vocação com ninharias. Essa é uma vocação tão sublime que está abaixo da dignidade dela ser desperdiçada exclusivamente com objetos pequenos e mesquinhos. Essa coisa, que é a inteligência humana, você a usa para entender do ser humano para cima; do ser humano para baixo, não vale. Para entender o ser humano ou coisas melhores. Menos do que isso, você está jogando fora o seu talento.





 Tomando um cafezinho, eu estava conversando com alguns dos alunos e levantou-se uma questão interessante que é o quanto a vida humana é curta para esse trabalho da inteligência; o quanto oitenta, noventa anos é pouco para isso. E aí se levantou uma questão: ‘mas se há uma vida depois da morte, você pode continuar’. Esta é uma questão interessante, porque se há uma vida depois da morte, ela é puramente espiritual. Então, se você levou uma vida como a do boi, só pensando em pagar as contas e resolver esses problemas, na hora em que esta vida te for tirada, vai ser muito pior para você se tiver outra vida depois dessa; se tiver uma vida puramente espiritual, na qual essa vida não existe mais. Tudo o que te definia como pessoa não existe mais, você perdeu. Então, havendo uma vida após a morte, ela só é de alguma maneira interessante para quem durante a sua vida nesse mundo se interessou de algum modo por uma atividade que fosse ela mesma também puramente espiritual. É justamente só para a pessoa que dedicou a vida dela – todo dia, uma ou duas horas por dia – para esse trabalho da inteligência, só para essa pessoa uma vida espiritual depois da morte tem algum interesse. Para as outras pessoas, essa vida seria um tormento, seria só um sofrimento.

O próprio Cristo falou que o seu coração está onde estão os seus tesouros. O que é um tesouro? É uma coisa que sua mente acalenta como valiosa; é uma coisa para a qual a atenção de sua mente se volta naturalmente. Se a sua mente está o tempo todo ocupada – ‘tenho que pagar a conta disso, tenho que fazer não-sei-o-quê, tenho que arrumar aquilo’ –, está só na vida biológica, quando você morrer ela vai continuar na vida biológica. Se ela continua funcionando depois da morte, ela vai continuar no mesmo processo, porque esse é o seu tesouro; só que esse tesouro estará longe de você. Isto é o inferno.

Existe um clássico sobre a meditação, uma grande obra sobre a meditação chamada Opúsculo sobre a arte de aprender e de meditar, de Hugo de São Vítor. Hugo de São Vítor foi um pensador que viveu no século XI, passagem do século X ao XI. Ele fala: ‘sim, uma das atividades mais importantes da vida humana é meditar. A vida humana é meditar’. Mas ele mesmo fala: ‘mas a meditação é impossível sem você recoletar certo material acerca do tema da meditação, porque toda meditação é acerca de algo. Onde você vai achar esses temas?’ Ele dizia: ‘só tem duas fontes de temas para a inteligência humana: a natureza e os livros. Não tem outras’. Claro, se você tiver a felicidade de morar no meio de um bosque maravilhoso, você pode tomar como base para a maior parte de suas meditações esse cenário idílico. Você sai da sua casa, senta do lado do riacho, fica ouvindo o barulhinho, vê as árvores, o ventinho passando e aí você vai usar isso como temas de meditação. Se você vive em um apartamento num paliteiro de prédios, eu sugiro que você compre alguns livros; é mais barato do que comprar o bosque.

Esse exercício diz que só isso é vida. O resto não é vida, o resto é um mecanismo cíclico que nunca avança. Nós pensamos assim: ‘se eu tiver mais dinheiro, o problema das contas vai sumir’. Mentira. Se eu tiver mais dinheiro, o problema das contas vai mudar de escala e vai continuar existindo do mesmo jeito; se eu tiver um bilhão de reais, o problema de contas será na escala de um bilhão de reais. Por quê? Porque isto é um mecanismo cíclico que não tem saída. É como a necessidade de alimento, a necessidade de sono ou a necessidade de sexo – tudo isso aí são mecanismos cíclicos. Vai dar uma volta no relógio e você vai precisar disso de novo. E depois vai acontecer de novo, de novo, de novo, de novo e assim vai ser sua vida toda. Isso não é vida, isso é um mecanismo. É somente na parte intelectual e espiritual que você possui uma vida, quer dizer, um processo de desenvolvimento que não se repete, mas que se abre para universos cada vez mais amplos. Somente aí existe um desenvolvimento real. Aliás, esse é um dos temas favoritos dos orientais em meditação: este mundo é Samsara; é uma série de ciclos que se repetem e que não se resolvem nunca. Essa é a figura que o oriental tem do mundo natural e essa figura é verdadeira, porque o mundo natural é assim mesmo, ele é uma indicação que não se resolve.

We move in circles
Balanced all the while
On a gleaming razor's edge.

É isso que põe o sujeito na dimensão realmente humana; é só isso que nos distingue dos animais. Não é o nosso jeito de pagar as contas com o real. Os animais pagam com o esforço físico; o boi tem que andar até a grama para pegar. E nós pagamos com um pedaço de papel, mas esse pedaço de papel significa esforço físico, é a mesma coisa. E pensem nisso: se existe uma vida após a morte, ela é um tormento para quem não viveu uma vida intelectual e espiritual antes da morte. Ela é só perder o que você tinha. Então, com este pensamento, eu vos deixo. Se existe uma vida após a morte, ela é um tormento para quem não tinha uma vida intelectual e espiritual antes da morte; ela é só perder tudo. 



Boa noite a todos."

Luiz Gonzaga de Carvalho Neto




segunda-feira, 21 de março de 2016

A Mais Poderosa Força do Universo

A experiência humana atinge seu ápice nas condições extemas, seja para o sumo bem, ou o mal. 

Relato do dr. Viktor Frankl, criador da logoterapia, durante seu encarceramento no campo de concentração de Auschwitz na Segunda Grande Guerra:


Quando nada mais resta 


Enquanto avançamos aos tropeços, quilômetros a fio, vadeando pela neve ou resvalando no gelo, constantemente nos apoiamos um no outro, erguendo-nos e arrastando-nos mutuamente. Nenhum de nós pronuncia uma palavra mais, mas sabemos neste momento que cada um só pensa em sua mulher. Vez por outra olho para o céu no horizonte em que assoma a alvorada por trás de um lúgubre grupo de nuvens. Mas agora meu espírito está tomado daquela figura à qual ele se agarra com uma fantasia incrivelmente viva, que eu jamais conhecera antes na vida normal. Converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a sorrindo, vejo seu olhar como que a exigir e a animar ao mesmo tempo; e - tanto faz se é real ou não a sua presença - seu olhar agora brilha com mais intensidade que o sol que está nascendo. Um pensamento me sacode. É a primeira vez na vida que experimento a verdade naquilo que tantos pensadores ressaltaram como a quintessência da sabedoria, por tantos poetas cantada: a verdade de que o amor é, de certa forma, o bem último e supremo que pode ser alcançado pela existência humana. Compreendo agora o sentido das coisas últimas e extremas que podem ser expressas em pensamento, poesia - e em fé humana: a redenção pelo amor e no amor! Passo a compreender que a pessoa, mesmo que nada mais lhe reste neste mundo, por alguns momentos - entregando-se interiormente à imagem da pessoa amada. Na pior situação exterior que se possa imaginar, numa situação em que a pessoa não pode realizar-se através de alguma conquista, numa situação em que sua conquista pode consistir unicamente num sofrimento reto, num sofrimento de cabeça erguida, nesta situação a pessoa pode realizar-se na contemplação amorosa da imagem espiritual que ela porta dentro de si da pessoa amada. Pela primeira vez na vida entendo o que quer dizer: os anjos são bem-aventurados na perpétua contemplação, em amor, de uma glória infinita...

À minha frente, um companheiro cai por terra, e os que vão atrás dele também caem. Num instante o guarda está lá e usa seu chicote sobre eles. Por alguns segundos se interrompe minha vida contemplativa. Mas num abrir e fechar de olhos eleva-se novamente a minha alma, salva-se mais uma vez do aquém, da existência prisioneira, para um além que retoma mais uma vez o diálogo com o ente querido: eu pergunto - ela responde; ela pergunta - eu respondo.

"Alto!" Chegamos ao local da obra: "Cada qual busque sua ferramenta! Cada um pegue uma picareta e uma pá!" E todos se precipitam para dentro do galpão completamente às escuras para arrebanhar uma pá jeitosa ou uma picareta mais firme. "Como é, não vão se apressar, seus cachorros imundos?" Dali a pouco estamos na vala, cada um em seu lugar da véspera. A picareta estilhaça o chão congelado, soltando até fagulhas. Nem mesmo os cérebros ainda degelaram, os companheiros continuam calados. Meu espírito ainda se apega à imagem da pessoa amada. Continuo falando com ela, e ela continua falando comigo. De repente me dou conta: nem sei se minha esposa ainda vive! Naquele momento, fico sabendo que o amor pouco tem a ver com a existência física de uma pessoa. Ele está ligado a tal ponto à essência espiritual da pessoa amada, a seu "ser assim" (nas palavras dos filósofos), que a sua "presença" e seu "estar-aqui-comigo" podem ser reais sem sua existência física em si e independentemente de se estar com vida. Eu não sabia, nem poderia ou precisaria saber, se a pessoa amada estava viva. Durante todo o período do campo de concentração não se podia escrever nem receber cartas. Mas isso, naquele momento, de certa forma não tinha importância. As circunstâncias externas não conseguiam mais interferir no meu amor, na minha lembrança e na contemplação amorosa da imagem espiritual da pessoa amada. Se naquela ocasião tivesse sabido: minha esposa está morta - acho que esse conhecimento não teria perturbado meu enlevo interior naquela contemplação amorosa. O diálogo espiritual teria sido igualmente intenso e gratificante. Naquele momento, apercebo-me da verdade: "Põe-me como selo sobre o teu coração (...) porque o amor é forte como a morte" (Cantares 8:6)











"A lembraça de Deus é logicamente função da correção de 
nossa noção de Deus e da profundidade de nossa compreensão: 
a Verdade, na medida em que ela é essencial e que nós a compreendemos, 
toma posse de todo o nosso ser e o transforma pouco a pouco 
e segundo um ritmo descontínuo e imprevisível. Cristalizando-se em nós, 
Ela "se torna o que nós somos a fim de nos tornar o que Ela é". 
A manifestação da Verdade é um mistério de amor, assim como, 
inversamente, o conteúdo do amor é um mistério da Verdade."
Frithjof Schuon

sábado, 12 de março de 2016

A Perda do Sentido Espiritual da Natureza


'O que se entende hoje do estudo da natureza física? É a ciência que procura estudar da natureza somente os seus aspectos diretamente mensuráveis, matematizáveis. Quer dizer, é uma espécie recorte da natureza onde se pega apenas os seus aspectos quantitativos mais facilmente captáveis e organizáveis num conjunto de relações. Relações que quando se revelam constantes, cíclicas, repetitivas, adquirem o nome de Leis. Lei científica, no contexto da ciência moderna, é uma espécie de equação matemática que se verifica repetidamente estabelecendo uma relação entre fatos da natureza. A ciência hoje em dia é do tipo descritiva-geométrica da natureza e que busca somente as repetições. Ora, o aspecto repetitivo e mensurável de um fenômeno, é evidentemente só uma faixa, um corte, uma fatia por assim dizer. Se você pegar antes do ciclo chamado Ciclo Moderno que começa com a Renascença, você verá que a ciência Física se ocupava de muito mais coisas, como por exemplo o papel do significado das coisas. O significado pressupõe uma intencionalidade. Ora, em todo o ciclo moderno e praticamente toda a cultura universitária atual, se baseia na idéia de que só existe intencionalidade no reino da intencionalidade humana e nada mais. Somente o ser humano possui intenções e portanto que age com um significado. Ao passo que todo o reino da natureza terá que ser explicado independentemente de significados. Ou seja, a ciência não se interessa pelo que a natureza nos comunica. Mas apenas em descrever e medir seu comportamento desde fora. Há um recuo da capacidade de compreensão. Evidente que esta concepção vem diretamente da divisão cartesiana entre a coisa pensante que é a nossa mente e a coisa extensa que é o objeto da natureza. No século XVIII, Leibniz vai mostrar que apenas o aspecto quantitativo, a medida, não basta para constituir o conceito de um ente real; e que portanto o mundo estudado pela física moderna não era propriamente real, mas um esquema matemático que coincide em certos pontos com o mundo real.

'Look, the skies are crying again'

É claro que esta despersonalização da natureza traz como consequência uma excessiva personalização do mundo da fala humana, porque o homem vivendo num universo hostil sem significado, acaba se sentindo mal e as suas necessidades de expressão e comunicação se tornam exacerbadas. Daí que ao mesmo tempo em que a ciência vai descrevendo um mundo cada vez mais impessoal, você vai vendo na prática o processo inverso: um processo de subjetivação cada vez maior. Por ex.: Na época de Shakespeare, no século XVIII (período romântico), as pessoas começam a falar de emoções interiores das mais subjetivas de uma maneira que nunca o homem tinha feito em toda sua existência. E então, nas memórias de Jean Jacques Rousseau você vai ver o indivíduo pegando a sua vidinha, a sua alminha e se desdobrando nos mais íntimos detalhes para todo mundo ver. Isto aí é um reflexo de uma despersonalização da natureza. Então, é um espécie de excesso para compensar um excesso contrário.

A situação urbana moderna é por um lado a expressão de toda essa ciência técnica. E dentro das cidades surge um tipo de cultura que é especificamente subjetivista como compensação. Como as pessoas estão muito oprimidas ali, então elas sentem que têm que exprimir os seus sentimentozinhos para sentir que são gente. Mas é uma expressão muito pobre e que vai corromper o sujeito ainda mais. Qualquer intenção humana que se superpõe à realidade, reflete demência, nada mais. O empregado que tira férias e vai para montanha acredita que está sonhando. E depois quando ele volta para o trabalho, acredita que voltou para a realidade. Mas é justamente ao contrário: as montanhas, o mar são realidades que já estavam aí há milênios. Isso não que dizer que temos que acabar com a civilização, com as máquina; mas que temos que colocar as devidas proporções nas coisas. Os mares, as estrelas, os planetas existem mesmo e nós estamos num mundinho pequenino de civilização colocando as nossas intenções. Mas este não é efetivamente o mundo real. É somente uma forma de adaptação humana a um mundo real que preexiste. A redução matemática que se fez da natureza é um fenômeno criado pelo homem. Quer dizer, é uma espécie de refúgio intelectual no qual o homem, aterrorizado dentro da complexidade da natureza, se esconde dentro de uma versão simplificada que ele mesmo inventou. Isto é uma reação primitiva. Essa simplificação mental que é feita pelo homem para não ver a realidade porque se está como medo dela (em vez de você estabelecer uma espécie de diálogo para tentar entender do que está se passando), não é uma reação do mundo moderno; ela sempre existiu no homem. Tem um historiador de arte que observou: Quanto mais você remonta para trás na historia da arte, as formas de desenho eram mais simplificadas, esquemáticas e geométricas. Porque que o homem primitivo em vez de desenhar o que via, desenhava figuras geométricas? É simples: ele estava no meio de uma confusão natural. Tendo medo daquilo, ele recuava para um mundo inventado, geométrico um mundo matematizável (dentro das possibilidades matemáticas que ele tinha). Quando você chega mais ou menos na época do império greco-romano, começa a ver que se alcançou aí um certo domínio da natureza que permite que o homem olhe de novo para a natureza, sem medo, e comece a gostar dela. Porém se você avançar mais, quando a civilização urbana cresce e tampa a natureza, aí você começa a idealizar a natureza cada vez mais: daí surge o romantismo, idealismo, essas coisas todas. É uma natureza, uma naturalidade inventada. Quando se fala em naturalidade inventada, não é só a visão do universo natural onde você tem a introdução do artificialismo. Mas na própria expressão dos sentimentos humanos. Na época de Jean-Jacques Rousseau onde era moda ser sincero, ele inventa emoções que não tinha, inventava até pecados que ele não cometeu em nome de ser sincero. Isso quer dizer que até no contato consigo mesmo, não só com a natureza exterior mas com a sua própria natureza íntima), o homem substitui o observado pelo inventado. A pesquisa histórica comprovou que muitas das sacanagens que Rousseau atribuía a si mesmo eram mais uma super-pose de sincero. O pessoal descobriu que ele não era tão ruim quanto ele dizia, era inventado mesmo.

Esse coisa de você tentar parecer pior do que é, essa sinceridade posada, é uma típica invenção deste terceiro estágio da civilização, onde a civilização urbana já tampou completamente a natureza. Como você não pode chegar nela, você a inventa. Ora, na mesma medida que você inventa a natureza exterior (como já dizia a divisa alquímica: como é em cima é em baixo) na medida em que você se afastou completamente da natureza sensível e agora tem que inventá-la, você acaba se afastando da  própria natureza interior e tem que inventá-la. Então já não se sabe mais o que se passa dentro de você. Você pode inventar uma fantasia lisonjeira ou deprimente. Mas tanto faz, você pouco sabe a respeito de si: a imaginação está inventado tudo. Se verificar as doutrinas modernas a respeito do inconsciente, existem tantas criações diferentes do inconsciente (Freud, Jung, Reich) que estou seriamente inclinado a acreditar que não tem nenhum santo. Porque ninguém pode observar tudo isto. E pergunto eu: será que um auto conhecimento autêntico seria tão diferente de pessoa para pessoa? Então eu teria um inconsciente freudiano, você teria um inconsciente Reichiano. O inconsciente deve ser mais ou menos igual para todo mundo. Quer dizer, estão tentando pegar a natureza interior do homem desde fora e com uma grade de conceitos mais ou menos inventada: exatamente como da a Física com a Matemática Tem-se que deixar a alma falar. A condição sine qua non para a alma falar é entender que ela não vai falar nada de acordo com a divisão dos conhecimentos que nós inventamos. Quer dizer, a natureza não vai dar hoje para você uma aula de Física, uma aula de química depois uma aula de gramática; ela não vai fazer isso. Então para começar a entender é preciso admitir em primeiro lugar que as nossas divisões universitárias do conhecimento foram inventadas por nós mesmos. E que a natureza é uma só e ela só pode falar de tudo junto. Você é que tem que depois separar e classificar. Mas se você espera que ela fale em qualquer das linguagens que nós concebemos, ela não vai falar. Ela vai ter que ter uma linguagem própria que é prévia, que é anterior, que é mais básica do que todas estas divisões. Mas precisamos entender esta linguagem que é a linguagem simbólica. A Ciência Natural (no tempo que os filósofos ainda eram capazes de interpretar algo da ciência natural) era simultaneamente uma ciência espiritual. E os muitos sentidos dos símbolos remetiam aos diversos aspectos do conhecimento mesmo. A gente só vai entender a Física de Aristóteles se entender isto aqui. A física antiga podia ser ao mesmo tempo uma teologia e uma psicologia transcendental. O que é psicologia transcendental? É a psicologia dos aspectos superiores, cognitivos do homem. Ora, para o nosso conceito atual de ciência física qualquer consideração de ordem teológica ou de psicologia, transcendental é totalmente extemporânea (porque a física só se ocupa de medir relações matematizáveis: ela entende disso como ciência natural). Bom, por um lado tem uma ciência natural por outro lado tem o estudo da natureza que é por um lado a física, a matemática; e por outro lado existe o estudo do homem que é história, sociologia etc... E os aspectos espirituais da própria natureza, onde ficam? Não ficam, não há lugar para eles. Eles não podem ser captados nem pela Física, nem pelas ciências naturais, nem pelas ciência humanas. Porque é algo mais básico do que essa divisão natural e a feita pelo ser humano. Ela é intrinsecamente inseparavelmente natural e humana.

É justamente essa síntese do natural e humano no divino que caracteriza este ciclo pré-moderno. Se você pega a linguagem humana, alguns dos símbolos humanos então é ciência humanas (astrologia história, lingüística etc.) Por outro lado, você tem uma linguagem cósmica (que é a ciência da Física etc.); mas não é bem uma linguagem; é um conjunto de esquemas. Mas quando junta isso aqui? No mundo cartesiano, porque nele a mente e o corpo e a coisa extensa não se juntam. Ora, isso aí é simplesmente uma divisão do saber.

É absurdo que essa divisão do saber coincida exatamente com a divisão da realidade. Porque estas 2 coisas não estão realmente separadas. Aonde está o mundo humano (o mundo histórico, da línguas etc.)? Está dentro do Cosmos e chega ao nosso conhecimento se não através das estruturas dos conceitos, da linguagem que nós mesmos inventamos para captá-la. Esse é o máximo problema do conhecimento do século XX que seria onde se capta a linguagem comum da natureza e do homem? E onde está esta linguagem? Bom, por um lado ela está na imensidão da natureza visível. E acima, está na esfera puramente metafísica. É no plano supra-sensível que nós vamos ter que juntar a linguagem humana e cósmica na linguagem divina. Se existe a ciência da interpretação da linguagem divina, é exatamente destas bases complementares da alquimia que nós estamos falando. Quer dizer que se, de cara, nós abolíssemos da ciência as considerações das chamadas causas finais, as finalidades nós não vamos entender coisa nenhuma. Se nós acreditamos que na ciência física tudo pode ser explicado apenas pela causa eficiente (por aquilo que provocou o acontecimento e não a finalidade pelo que acontece) não vamos entender nada. Ora, o presente número 1 do método científico da Renascença é abolir estas causas finais (abolir a finalidade e estudar somente as causas eficientes). Por outro lado, se existe uma intencionalidade natural, ela não é uma intencionalidade no sentido humano porque senão nós vamos cair de novo no Romantismo (quer dizer, a chuva que cai, vai falar da namorado que ele largou ontem) Ou seja, se a natureza fala e tem intencionalidade, o que ela fala deve ser uma coisa completamente diferente daquilo que se fala no mundo exclusivamente, na sociedade. E o que ela fala também deve ser muito diferente do que captamos na natureza quando observamos de fora como mero tecido de relações matematizáveis. Para complicar mais a coisa, aconteceu que este estudos alquímicos, metafísicos etc.. bem como as tradições que ser tornaram portadoras deste conhecimento, se tornaram objeto de interesse das ciências humanas. Então hoje existem estudos históricos, antropológicos, sobre alquimia e ritos que tentam encarar todos estes conhecimentos apenas sob o ponto de vista da linguagem humana. Aí é que a confusão chegou no seu máximo. Estudos sobre o esoterismo seriam na verdade uma esoterologia (na verdade seria um estudo sobre o que certas culturas falaram sobre os conhecimentos esotéricos; os quais nunca são enfocados como tais, mas apenas no seu reflexo cultural) Por ex.. agente pode explicar que tal cultura acreditava em duendes. A antropologia pode verificar isso aí. Agora a antropologia não pode verificar se o duende existe ou não. Agora, se eu não sei de uma determinada crença reflete algo da realidade objetiva ou não, como é que eu vou entender esta crença? Por ex.: você acredita que você assistiu esta aula porque você esteve aqui. Agora, amanhã ou depois o sujeito vai estudar sua psique e vai querer os fundamentos da sua crença nesta aula sem levar em conta que a aula realmente aconteceu.

Outro exemplo: na América não havia cavalos (os espanhóis que trouxeram). Daí depois que os índios viram cavalos eles passaram a acreditar em cavalos. Agora explique a crença dos índios em cavalos sem levar em conta que os espanhóis trouxeram cavalos para a América. Aí você podia dizer na cultura indígena existia alguns símbolos que explicavam a crença neste tipo de seres. E você vai ter que achar uma explicação antropológica para aquele negócio; Mas não tem explicação antropológica para isso; não tem explicação antropológica alguma! O sujeito acredita em cavalo porque ele viu cavalo. Por outro lado uma cultura também pode implicar a crença em coisas que não existem, algumas maluquices de fato? Só que antropologicamente nós não temos como distinguir as duas. Quer dizer que uma crença sensata ou uma crença insensata, antropologicamente valem a mesma coisa. Então uma vez que se perde a capacidade de apreender o sentido espiritual da natureza e cai no cartesianismo dualista, não se tem mais condição de distinguir se uma cultura está todinha louca ou se ela está instalada na realidade.'

Olavo de Carvalho



"O Lórien! The Winter comes, the bare and leafless Day;
The leaves are falling in the stream, the River flows away.
O Lórien! Too long I have dwelt upon this Hither Shore
And in a fading crown have twined the golden elanor."