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domingo, 4 de outubro de 2015

Como ser fiel a si mesmo a seguir sua vocação


'Entre as várias inclinações possíveis que nos acometem, cada um de nós sempre encontra aquela que é a mais genuína e autêntica. A voz que o convoca para esse ser legítimo é o que denominamos “vocação”. Mas a maioria das pessoas se empenha em silenciar a voz da vocação e se recusa a ouvi-la. Conseguem gerar ruído dentro de si mesmas (...) distrair a própria atenção a fim de não ouvi-la; e se iludem ao substituir o eu genuíno por uma vida falsa.






Muitos dos grandes Mestres da história confessaram ter experimentado alguma espécie de força oculta, de voz interior ou de senso de destino que os impulsionava no rumo certo. Para Napoleão Bonaparte foi sua “estrela”, que ele sempre sentia ascender quando fazia o movimento certo. Para Sócrates, foi seu demônio, uma voz talvez de seres superiores, que falavam com ele em negativas – dizendo-lhe o que evitar. Goethe também a chamava de demônio – uma espécie de espírito que habitava dentro dele e o impelia a realizar seu destino. Em tempos mais modernos, Albert Einstein se referia a uma espécie de voz interior, que orientava o rumo de suas especulações. Todas essas manifestações são variantes do que Leonardo da Vinci experimentou com seu próprio senso de destino. Esses sentimentos podem ser vistos como puramente místicos, além de qualquer explicação, ou como alucinações ou delírios. Mas há outra forma de encará-los – como algo real, prático e explicável. É possível compreendê-los da seguinte maneira:


Todos nascemos como seres únicos. Essa singularidade é característica genética de nosso DNA. Somos fenômenos sem igual no Universo – nossa composição genética exata nunca ocorreu antes nem se repetirá jamais. Em todos nós, essa singularidade se expressa pela primeira vez na infância, por meio de certas inclinações primordiais. Para Leonardo, foi a exploração do mundo natural em torno de sua comuna, ao qual deu vida no papel, à sua maneira. Para outros, pode ser uma atração precoce por padrões visuais – não raro um indício de interesse futuro por matemática. Ou quem sabe um fascínio por movimentos físicos ou arranjos espaciais.


Como explicar essas inclinações? São forças dentro de nós que vêm de um lugar profundo incapaz de ser descrito por palavras conscientes. Elas nos atraem para certas experiências e nos afastam de outras. À medida que essas forças nos movimentam para lá e para cá, influenciam o desenvolvimento de nossa mente de maneira muito específica. Essa singularidade profunda naturalmente quer se afirmar e se expressar, mas algumas pessoas a experimentam de modo mais forte que outras. No caso dos Mestres, sua intensidade é tamanha que ela é percebida como uma realidade externa – uma força, uma voz, um destino. Nos momentos em que nos dedicamos a atividades que correspondem às nossas inclinações mais arraigadas, até sentimos um toque dessa realidade: as palavras que escrevemos ou os movimentos que executamos ocorrem com tanta rapidez e com tanta facilidade que até parecem se originar fora de nós. Estamos literalmente “inspirados”, palavra de origem latina que significa “soprar dentro”.


Podemos descrevê-la nos seguintes termos: ao nascermos, planta-se uma semente em nosso interior. Essa semente é a nossa singularidade. Ela quer crescer, transformar-se, florescer em todo o seu potencial, movida por uma energia assertiva natural. A sua Missão de Vida é cultivar essa semente até o pleno florescimento, é expressar sua singularidade por meio do trabalho. Você tem um destino a realizar. Quanto maior for a intensidade com que o sentir e o cultivar – como uma força, uma voz ou o que quer que seja –, maior será sua chance de realizar a sua Missão de Vida e alcançar a maestria.


O que atenua essa força, o que faz com que você não a sinta ou mesmo duvide de sua existência, é a extensão em que sucumbe a outra força da vida – as pressões sociais para o conformismo. Essa contraforça pode ser muito poderosa. Você quer se encaixar em um grupo. Inconscientemente, talvez sinta que o que o distingue dos demais é algo embaraçoso ou doloroso. Seus pais muitas vezes também atuam como contraforça. Pode ser que tentem direcioná-lo para uma carreira lucrativa e segura. Se essas contraforças se tornam poderosas demais, você perde qualquer contato com sua singularidade, com quem você realmente é. Suas inclinações e seus desejos passam a se moldar em outras pessoas.


Essa situação pode lançá-lo em terreno muito perigoso. Você acaba escolhendo uma carreira que não é compatível com sua personalidade. Seus desejos e interesses aos poucos se desvanecem e seu trabalho sofre as consequências. Você passa a procurar prazer e realização fora do trabalho. Ao se desengajar cada vez mais da carreira, deixa de prestar atenção nas mudanças dentro de sua área de atuação – fica para trás e paga por isso. No momento de tomar decisões importantes, você se esconde ou segue o exemplo dos outros, pois não tem senso de direção nem uma bússola interior que o oriente. Perdeu o contato consigo mesmo. Você precisa evitar esse destino a todo custo. O processo de seguir a sua Missão de Vida que o leva à maestria pode ser iniciado a qualquer momento. A força oculta está sempre presente dentro de você, pronta para entrar em ação.


O processo de realizar a sua Missão de Vida se desenvolve em três estágios. Primeiro, você precisa se ligar ou religar com suas inclinações, com aquele senso de singularidade. Portanto, o primeiro passo é sempre introspectivo. Você vasculha o passado em busca de indícios daquela voz ou força interior. Silencia as outras vozes que podem confundi-lo – como as de pais e amigos. Procura um padrão subjacente, o âmago de seu caráter, que você deve compreender da forma mais profunda possível.


Segundo, com o restabelecimento da conexão, você deve examinar a carreira em que já está ou que está prestes a iniciar. A escolha desse caminho – ou seu redirecionamento – é fundamental. Nesse estágio, é preciso ampliar seu conceito de trabalho. Com muita frequência, estabelecemos uma distinção entre vida profissional e vida pessoal, sendo que só nesta última encontramos prazer e realização. O trabalho geralmente é visto como um meio de ganharmos dinheiro para aproveitar a vida fora dele. Mesmo que encontremos alguma satisfação em nossa carreira profissional, ainda tendemos a compartimentar a vida dessa maneira. Essa é uma atitude deprimente, pois, afinal, passamos no trabalho uma parcela substancial das horas em que estamos acordados. Se encararmos a vida profissional como uma provação a ser enfrentada para alcançarmos as verdadeiras fontes de prazer, as horas despendidas no trabalho representarão um trágico desperdício de nossa curta existência. Em vez disso, é desejável ver o trabalho como algo mais inspirador, como parte de sua vocação. A palavra “vocação” vem do latim e significa chamado ou convocação. Seu uso em relação ao trabalho coincidiu com o início do Cristianismo – certas pessoas eram “convocadas” por Deus a abraçar a vida religiosa; essa era sua vocação. Os primeiros cristãos seriam capazes de “ouvir” literalmente sua vocação, ao escutarem o chamado de Deus, que os escolhera para esse trabalho de salvação. Com o passar do tempo, o termo se secularizou, passando a se referir a qualquer trabalho ou estudo que alguém sentia ser compatível com sua personalidade. No entanto, é hora de retornarmos ao sentido original do termo, pois ele se aproxima muito mais da ideia de Missão de Vida e de maestria.


Essa voz que o convoca vem de um lugar profundo da alma. Ela emana de sua individualidade.  Indica quais atividades são mais compatíveis com seus interesses. E, a certa altura,  ela o chama para um tipo especial de trabalho ou carreira. Nesse caso, o trabalho passa  a ser algo profundamente conectado com o seu ser, não um compartimento isolado.  É assim que se desenvolve o senso de vocação.


Você deve encarar sua carreira ou caminho vocacional mais como uma jornada, com suas curvas e desvios, do que como uma linha reta. Você começa escolhendo uma área ou posição que corresponda mais ou menos às suas inclinações. Esse ponto de partida lhe oferece espaço para manobra e indica importantes habilidades a serem aprendidas. Não se pode começar com algo muito grandioso e ambicioso – você precisa ganhar a vida e conquistar confiança. Uma vez nesse caminho, você encontra certas trilhas internas que o atraem, enquanto outras o desagradam. Ajusta o curso e talvez se movimente para outra área assm, mas sempre expandindo sua base de qualificações. Como Leonardo, você parte do que faz para os outros e o converte em algo próprio.


No final, descobre determinada área, nicho ou oportunidade que se encaixa perfeitamente com suas inclinações. Você o reconhecerá tão logo o encontre, pois ele irá disparar aquele senso infantil de deslumbramento e empolgação. Depois disso, tudo se encaixará. Você aprenderá com mais rapidez e mais profundidade. Seu nível de habilidade chegará a um ponto em que você será capaz de reivindicar sua independência no ambiente de trabalho e tomar seu próprio rumo. Em um mundo em que não há tantas coisas que não conseguimos controlar, essa condição lhe proporcionará o máximo de poder. Você determinará suas circunstâncias. Como seu próprio Mestre, não mais estará sujeito aos caprichos de chefes tirânicos ou de colegas manipuladores.


Essa ênfase em sua singularidade e em sua Missão de Vida talvez pareça um conceito poético, sem qualquer relação com a realidade prática, mas, na verdade, ela é bastante relevante para os tempos em que vivemos. Estamos entrando numa era em que podemos confiar cada vez menos no Estado, nas empresas, na família ou nos amigos como fontes de ajuda e de proteção. É um ambiente globalizado, altamente competitivo. Precisamos aprender a nos desenvolver. Ao mesmo tempo, é um mundo apinhado de problemas graves e de oportunidades promissoras, que serão mais bem resolvidos e aproveitados pelos empreendedores – indivíduos ou pequenos grupos que pensam de forma independente, se adaptam com rapidez e possuem pontos de vista únicos. Suas habilidades criativas sem igual serão muito valorizadas.


Pense nisso da seguinte maneira: no mundo moderno, o que mais falta em nossa vida é o senso de um propósito mais amplo. No passado, eram as religiões organizadas que ofereciam esse sentimento. No entanto, hoje quase todos vivemos em um mundo secularizado. Nós, seres humanos, somos únicos, e portanto devemos construir nosso próprio mundo. Não reagimos simplesmente aos acontecimentos por algum código biológico. Porém, sem o senso de direção, ficamos confusos. Não sabemos preencher e estruturar nosso tempo. Parece que não dispomos de um propósito na vida. Talvez nem mesmo tenhamos consciência de nosso vazio, mas ele nos contamina de todas as maneiras.


Sentir que somos convocados a realizar algo é a forma mais positiva de alcançarmos esse senso de propósito e de direção. É como uma busca religiosa para cada um de nós. Essa procura não deve ser vista como egoísta ou antissocial. Ela, de fato, se relaciona com algo muito maior que a vida de cada um. Nossa evolução como espécie dependeu da criação de uma grande diversidade de habilidades e de pontos de vista. Prosperamos com base na atividade conjunta de pessoas dotadas de talentos singulares. Sem essa diversidade, a cultura morre.


A singularidade de cada um ao nascer é o fator fundamental dessa diversidade indispensável. Na medida em que ela é cultivada e expressada, um papel fundamental é exercido. Nossos tempos enfatizam a igualdade, o que pode ser confundido com a necessidade de todos serem idênticos. No entanto, essa igualdade na verdade oferece a todos as mesmas oportunidades para expressar suas diferenças, permite o florescimento da
biodiversidade. A vocação é mais que um trabalho a executar. É algo que se relaciona com a parte mais profunda do ser e que é manifestação da enorme diversidade na natureza e na cultura humana.

                                

Cerca de 2.600 anos atrás, Píndaro, poeta da Grécia Antiga, escreveu: “Torna-te quem és aprendendo quem és.” O que ele queria dizer com isso é o seguinte: você nasceu com determinada compleição e com certas tendências que o caracterizam. Algumas pessoas nunca se tornam quem são em seu âmago; param de confiar em si mesmas, sujeitam-se às preferências alheias e acabam usando uma máscara que oculta sua verdadeira natureza. Se você criar condições para descobrir quem realmente é, prestando atenção na voz e na força em seu interior, poderá realizar o seu destino – tornando-se um indivíduo, um Mestre.'

Robert Greene - Mastery

terça-feira, 1 de setembro de 2015

A mais elevada Vocação Humana




Raissa Maritain nasceu em 1883, na Rússia. Aos dois anos sua família mudou-se para Mariupol, na Criméia. Com 10 anos seus pais emigraram para Paris e aí, desde cedo, manifestou especial inclinação para o estudo. Aos dezessete anos ingressou na Sorbonne.




Este é o relato que ela nos deixou sobre o que encontrou nesta que era em sua época a mais famosa Universidade do mundo:



"Dezessete anos, diz Raissa, apenas dezessete anos, e as mais profundas exigências do espírito e da alma já se fazem ouvir! Toda uma vida já foi vivida, a da infância, a da confiança ilimitada. Agora, eis a adolescência, com seu cunho próprio: uma exigência total

.

Se os professores se lembrassem um pouco de sua própria alma de adolescentes, como tremeriam diante da ingenuidade dos que vêm a eles com a confiança ainda de uma criança, mas já com os direitos de um juiz justo!



Mas os professores de meu tempo, por melhores, dedicados e competentes que fossem, de geração em geração tinham se afastado cada vez mais das grandes exigências do espírito humano. O brilhante desenvolvimento das ciências da natureza e as esperanças infinitas que havia despertado, os levaram a desprezar os outros conhecimentos, em particular a esta sabedoria pela qual aspiramos antes, depois e acima de qualquer conhecimento das ciências particulares. Assim era a Sorbonne no começo de nosso século nos anos que precederam a guerra de 1914.



Quando nela ingressei, preocupei-me apenas em encontrar estes professores dos quais esperava que, sem que eu os interrogasse, fossem responder às minhas perguntas, dar-me uma visão ordenada do Universo, por todas as coisas no seu verdadeiro lugar. Depois de tudo isso saberia, eu também, qual é o meu lugar nesse mundo e se poderia ou não aceitar a vida que não escolhi e que me pesava.



O que me movia não era a curiosidade, não estava ávida de saber uma coisa qualquer, ainda menos de saber tudo; não estava perturbada pelas descobertas da ciência, no momento estas me deixavam bem indiferente, como algo de excedente mas que não me afetava diretamente. Não, eu só procurava verdadeiramente aquilo de que precisava para justificar a existência, aquilo que me parecia, a mim, necessário para que a vida humana não fosse uma coisa absurda. Tinha necessidade da alegria da inteligência, da luz da certeza, de uma regra de vida fundada sobre uma verdade sem falhas.



Com semelhantes disposições, evidentemente, eu deveria terme dirigido primeiramente aos filósofos. Mas ninguém me tinha orientado, e eu acreditava então que as ciências da natureza eram a chave de todo o conhecimento. Inscrevi-me, portanto, na Faculdade de Ciências. Nenhuma das minhas interrogações foi tratada pelos sábios eminentes que nos ensinavam a estrutura do Universo Físico. Aqueles que amavam o estudo tranqüilo da natureza eram observadores admiráveis. Mas, quanto a mim, preocupava-me com essa mesma natureza, mas queria conhecê-la de outra maneira, nas suas causas, na sua essência, na sua finalidade. Um dia aventurei-me a dizer isso ao professor e ele me respondeu indignado:



`Mas isso é mística!'



Desde então ouvi esta fórmula de escândalo muitas vezes na Sorbonne. Era com ela que costumavam condenar qualquer atividade da inteligência que procurava se elevar acima da simples verificação empírica dos fatos. Mas para mim foi a primeira ferida, o primeiro golpe no meu espírito, na confiança que depunha nos meus professores. Tive que aprender que os sábios pouco estimam os supremos princípios da inteligência, ou pelo menos não parecem preocupar-se muito com eles. Os valores puramente especulativos os interessam bem pouco, e as matemáticas são o seu mais alto céu inteligível. Os sábios, quando não filosofavam, se limitavam em geral ao simples bom senso empírico. Os que filosofavam e que conheci na Sorbonne eram, quando muito, partidários de doutrinas que negavam a objetividade de todo saber que ultrapassasse o conhecimento dos fenômenos sensíveis. Perguntava-me como os notáveis homens de ciência, cujos cursos eu seguia, ou aqueles cujos livros eu lia, podiam permanecer tranqüilamente num estado de espírito tão vago e tão confuso, sem preocupação alguma. Decepcionada com os estudiosos das ciências da natureza, Raissa nos conta que passou então a freqüentar os cursos dos professores que se dedicavam à filosofia:


Os filósofos cujos cursos passei a seguir na Faculdade de Letras tinham muitos méritos, possuíam erudição ampla e profunda, e uma alta consciência das exigências da investigação científica. Mas toda a sua inclinação era para a erudição histórica; consideravam as doutrinas não como proposições ou aproximações da verdade, mas como obras de arte ou de imaginação, tendo até menos referência com a realidade do que a arte, reduzindo seu estudo a um desfile caleidoscópico em que a forma nova destruía a anterior. Entregavam-se à análise sem fim das particularidades das causas históricas das doutrinas filosóficas como se esta fosse a tarefa que lhes cabesse de modo essencial. Por uma estranha contradição vivida, queriam verificar tudo e ao mesmo tempo desesperavam da verdade, cujo simples nome lhes desagradava e que não devia ser pronunciada senão entre as aspas de um sorriso desiludido. A única lição prática que pude receber daquele ensino tão consciencioso e desinteressado foi uma lição de relativismo integral.



Finalmente, fiz um balanço de tudo o que me tinham trazido  aqueles anos de estudo na Sorbonne. Não queria saber mais de uma tal comédia. Eu seria capaz de aceitar uma vida dolorosa, mas não uma vida absurda. Eu queria saber se ser é um acidente, um benefício ou uma desgraça. Se a natureza humana era tão infeliz que não chegava a possuir senão uma pseudo inteligência, capaz de tudo menos da verdade, se ela, ao julgar-se a si mesma, devia humilhar-se até esse ponto, não se podia mais nem pensar nem agir dignamente. Tinha pensado durante muito tempo que ainda valia a pena lutar pelos pobres, mas agora eu via que se não houvesse no mundo um só coração que padecesse certos sofrimentos, mesmo que não houvesse no mundo um só corpo que não conhecesse a morte, ainda assim isso exigiria uma satisfação."



Este é o testemunho de Raissa sobre o que ela encontrou na Universidade de Paris no início do século XX. Isto que ela ali buscava, algo que estava inteiramente fora das cogitações por parte dos professores daquela Universidade, isto mesmo entretanto tinha sido o objetivo perseguido pelos professores daquela mesma Universidade quando lá ensinavam nos séculos XII e XIII Hugo de São Vitor e Santo Tomás de Aquino. Raissa tinha se dirigido ao lugar certo, mas com sete séculos de atraso.



Que são, porém, suas palavras, senão um testemunho vivo de nosso século XX de que a contemplação não é um fenômeno cultural restrito a tal ou qual civilização, mas uma aspiração profunda da natureza humana; algo, no dizer de Raissa,


"a que aspiramos antes, depois e acima de qualquer 
conhecimento das ciências particulares?"

E de cujas palavras se deduz ser também o fim último da educação, pois não foi senão à Instituição que era o vértice do sistema educacional do mundo da época que Raissa se dirigiu como ao lugar mais óbvio quando quis satisfazer a esta mesma aspiração.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A Beleza da Vida Contemplativa

"Vamos fazer algumas considerações no
sentido de mostrar que tipos de desafio pode a inteligência encontrar já na simples
contemplação da natureza. Se não se é capaz de perceber isto de imediato, apesar de
estarmos mergulhados na natureza o tempo todo, é apenas porque estamos habitualmente
preocupados com insignificantes problemas do dia-a-dia que desviam toda a atenção de
nossa inteligência do espetáculo extraordinário que nos circunda.
Para tentarmos compreender o alcance desta afirmação, vamos considerar o
ato mais trivial de qualquer estudante, o ato de vir à escola. Consideremos, ademais, um
estudante habitualmente preocupado, um estudante de escola noturna.
Antes de vir à escola, para retemperarmos nossas forças e não sentir o
incômodo de assistir à aula com fome, jantamos em nossas casas.Este simples ato já é por
si um verdadeiro espetáculo.

Para tomarmos o alimento, a natureza teve que elaborar um sistema
digestivo bastante complexo para ser capaz de digerir precisamente aqueles mesmos
alimentos que ela própria, por outro lado, oferece a todos abundantemente.
Recolher estes alimentos esparsos pelo mundo para produzir uma simples
janta seria uma tarefa penosíssima. Mas tudo isto, naquele momento, já tinha sido
resolvido. Centenas de pessoas haviam estudado agricultura, haviam plantado nos lugares
mais diversos cada um dos alimentos que iriam ser utilizados em nossa janta, outra
multidão os colheu, centenas de homens os transportaram, outros os conservaram, e outros,
finalmente, se especializaram em saber distribuí-los e vendê-los, deixando-os localizados
em lugares de fácil acesso para que nós os adquiríssemos.

Assim, naquele momento, um mundo imenso de pessoas na verdade estava
se preocupando conosco, e a própria natureza também, que sabiamente preparava as chuvas
para a lavoura e fornecia ao nosso corpo as enzimas necessárias à digestão justamente
daqueles alimentos que ela própria produzia.
Nós, porém, ali sentados, não prestamos atenção a nada disso. Só
queríamos sair correndo para não chegar atrasados à escola.
Quando saímos de casa, porém, outro espetáculo não menos fantástico
estava preparado.

Alguém tinha construído um elevador para nosso uso, e o tinha instalado
exatamente no lugar onde era necessário para nosso pronto e imediato transporte. Para que
o elevador estivesse ali, quantas pessoas não tinham trabalhado! Quanto carvão não teve
que ser usado para produzir seu aço, quanta madeira não teve que ser plantada para
construir suas portas, quantos operários e engenheiros não reelaboraram este aço e esta
madeira para transformá-la em um elevador; quantos outros operários e engenheiros não
tiveram que prever na planta do edifício todo o trabalho dos colegas que fabricavam o
elevador. Mas depois, alguém continuava bombeando ininterruptamente energia elétrica de
muito longe para que ele funcionasse com apenas um toque de nosso dedo; e para que este
alguém pudesse fazer isto, milhares de outros homens tiveram que represar um rio e criar
um lago artificial, para fazer o que, ademais, tiveram antes que criar uma cidade operária
nas proximidades do campo de obras da represa!
A rua, ademais, estava calçada. Outras pessoas, sabe-se lá quantas, tinham
se preocupado com isto também. A rua estava calçada, e estava também asfaltada, para
fazer com que um ônibus pudesse trafegar para nossa comodidade. Sem que o pedíssemos,
não apenas um ônibus, mas os mais diversos ônibus passavam regularmente à nossa
disposição para nos levar não a um só lugar, mas a qualquer lugar que quiséssemos. Para
isto milhares de pessoas tiveram que estudar mecânica, projetar os ônibus, construir os
ônibus, vender os ônibus, fazer a manutenção dos ônibus, dirigir os ônibus, explorar
petróleo, refinar petróleo, transportar gasolina, educar motoristas, educar o trânsito,
sinalizar o trânsito, e não só tinham feito tudo isso como o continuavam fazendo
incessantemente para que pudéssemos tomar o ônibus naquele momento ou a qualquer
momento.

Naquele momento o Sol se punha. O Sol também fazia parte do espetáculo.
Fazia séculos que o Sol brilhava todos os dias, e por causa disso é que podíamos enxergar
todas as coisas, mas o que é incrível, porém, é que nós não percebemos ou pensamos nisto
um só momento.

Estávamos preocupados, como sempre, com um insignificante problema
pessoal, infinitamente menor do que tudo isso, teoricamente muito menos capaz de chamar
a atenção de qualquer ser inteligente por mais obtuso que fosse, mas que na verdade era
exatamente o que estava conseguindo tirar toda a nossa atenção daquele espetáculo
fantástico: o temor de um atraso pessoal de alguns minutos.
Como é possível que uma coisa tão minúscula e tão insignificante impeça
para a maioria das pessoas a percepção de uma coisa destas? Pois se é compreensível que
todos tenham o seu momento patológico na vida, o fato é que, quando lecionamos e
falamos destas coisas em salas de aula onde há alunos se preparando para o Magistério,
vários dos quais contando com mais de trinta anos de idade, percebemos que era, na
verdade, a primeira vez em todas as suas vidas que se davam conta do espetáculo de que
falava Pitágoras.

Mas, chegando à escola, não paramos para perceber também que não
estávamos chegando sozinhos a esta nobre instituição. Para que pudéssemos aprender
alguma coisa, todo este aparato fenomenal que nos permitiu chegar à escola foi igualmente
mobilizado para trazer dos lugares mais diversos dezenas ou centenas de outras pessoas
para fazerem funcionar a escola normalmente enquanto pudéssemos estudar
tranqüilamente. O nosso pequeno objetivo de nos dirigirmos à escola assim encontrava
resposta em um aparato de escala mundial, mas nem nós, nem nenhum dos funcionários da
escola pensavam nisto. Nós estávamos preocupados com o atraso; os funcionários com o
salário que iam receber no fim do mês.
Como nós não observávamos o que acontecia à nossa volta, subimos as
escadas correndo. Encontramos então não apenas um corpo de funcionários, mas também
um corpo de professores que estavam sendo preparados desde a sua infância, recrutados
das mais diversas cidades e educados por milhares de outros professores para que
pudessem acumular um vasto conhecimento e tudo isto, enfim, para dar uma aula de 50
minutos às 20:00 horas.

Como é possível que um tão vasto complexo de forças naturais, das quais
esta discussão é apenas uma insignificante fração, pudesse estar tão adequadamente
ajustada para um objetivo tão pequeno? E que fêz aquele aluno em toda a sua vida para
merecer semelhante coisa em troca? Como se não bastasse, fazia mais de trinta anos que
ele nem sequer se dava conta de tudo isto, e iria passar mais outros quarenta e morrer
assim, reclamando da imensidão de seus problemas, se não despertasse, só por alguns
minutos, apenas durante aquela aula.






Quem não é capaz de entrever a admirável beleza que existe por detrás de tudo isto, e o inexplicável sono em que vivemos no nosso quotidiano?"

-A Educação Segundo a Filosofia Perene